sábado, 21 de junho de 2014

COM FÚRIA E RAIVA - SOPHIA DE MELLO BREYNER

"Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"



TERROR DE TE AMAR - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


"Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas."

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Obra Poética"





ESTA GENTE - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

"Esta gente cujo o rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem 
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova 
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"



Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 14 de junho de 2014

A MÚSICA...

Consegues fazer amor com a música?
Eu consigo! Eu consigo… ah, eu consigo…
Deixá-la entrar… atingir-me as meninges…
Roçar-me os pensamentos como uma seda fresca e arrepiante
Vende-me a alma, ao diabo e entra… perde-me!
Em pecado… em ausência…
Desce possuiu-me o rosto… abrasa-o… exalta-me os olhos,
Os lábios, os ouvidos… incentiva-me o paladar…
Desce… prende-me os braços, percorrer-os… fá-los sonhar!
Desentorpece-me  as mãos…
Desvia-se… em direcção ao meu peito… arfo… cresce-me o peito
De êxtase. E contenho a respiração, nesse silêncio de mil sons
Desvia-se… Martela no meu centro de gravidade…
E toda eu sou astros e luz…
E desce e desvia-se… as minhas pernas não são mais…
São tenras, desejosas… mexem, suaves, tendenciais… são música…
Pés… vão… vêm… ficam… avançam… abraçam…
E numa explosão, o corpo perde-se…
O corpo vive!
O cérebro estoura!
Sou som, sou cor, sou braços, sou pernas…
Sou ouvidos, sou boca, sou arrepios, sou prazer…
Sou mãos, sou pés, sou amor, sou mulher…
Sou olhos, sou ventre, sou êxtase, sou ardor…

E sou música, sou… ah! Eu consigo…

(meu)




segunda-feira, 9 de junho de 2014

FERNANDO PESSOA - MENSAGEM

I. O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E Viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!




II. Horizonte

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da inicição.

Linha severa da longínqua costa
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e com sensíveis
Movimentos de esp'rança e de vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade.




III. Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do arreal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.


IV. Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, "Quem é que ousou entrar
Meus tectos negros do fim do mundo?"
E o homem do leme disse, tremendo:
"El-Rei D. João Segundo!"

"De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?"
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
"Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?"
E o homem do leme tremeu, e disse:
"El -Rei D. João Segundo!"

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
"Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!"




V. Epitáfio de Bartolomeu Dias

Jaz aqui, na pequena praia extrema, 
O Capitão do Fim. Dobrado e Assombro, 
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.


VI. Os Colombos

Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.


VII. Ocidente

Com duas mãos - o Acto e o Destino -
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o fecho trémulo e divino
E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.



VIII. Fernão de Magalhães

No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-ser na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto
Cingi-los, dos homens, o primeiro
Na praia ao longe por fim sepulto.

Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-ser nos horizontes, 
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.



IX. Ascensão de Vasco da Gama

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-se, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.



X. Mar

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.



XI. A Última Nau

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.

Ah, quanto mais o povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demora-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.



XII. Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia
Com que a chama do esforço se remoça,
E utra vez conquistaremos a Distância
Do mar ou outra, mas que seja nossa!


Texto Integral da obra "Mensagem" de Fernando Pessoa - Mar Português -Segunda de Três Partes da Obra.

NUM PESTANEJAR...

Tinha no sonho o sonho de te ver!
Queria, no sonho, desembrulhar-te
Queria cheirar-te, queria tocar-te, e segurar-te…
Sentir-te dentro, crescer e explorar…
Sentir-me… que te dá vida, que te quer!
Crescer contigo. Crescer e saber…
Saber-te bem, cada ruga que se desenruga,
Estica… e pequenos elementos
Que se produzem e reproduzem e formam
E dão corpo ao desejo de te ver!

Tenho na vida a vida que é amar-te!
Nesse tempo qu’é só meu, qu’é só nosso.
Nesse breve instante, quase passado…
Alegra-m’a dor que te traz
Sauda-m’o sopro qu’é o teu som
Ateia-m’o teu mexer e remexer
Nesse amanhecer que é futuro
Em que te vejo, em que te choro, em que te beijo
Dormente, despertando para o calor…
De mim, eternidade… p’ra t’amar e proteger!

(meu)



sábado, 7 de junho de 2014

INFLAMAÇÃO

Sinto… num instante poetizado Esse desejo, sem pudor, Com que me penetras a alma Desprendida, no acordar… Ainda perdida no despertar, mercê das tuas mãos. Sinto… um ardor afagador Que me abrasa , lento, explorador, Que me entesa cada nervo, Desdobra cada prega, e dolente na avidez Me traça o entendimento, cruzando o sonho, Exorcizando a moral, conjurando o apelo Ao teu toque, do teu corpo, dos teus segredos Ímpetos guiados e sussurrados… Ah! Perdida… Quero-te!
Tacto… luxúria e sons… sinto! Inflamados todos os sentidos… Enreda-me o cheiro da tua pele… Enrija-me o sal do teu suor… “Olha-me!”, chega-me o som… oiço! E olho… sofreguidão na asserção!

(meu)